Saturday, 1 June 2013

Poesia - Hamilton Faria

Bonsai ~ © SXC.hu
Doze Haikuazes

Quase inverno
O ventre da mulher -
Lua crescente

Esgoto o verbo
Só o silencio
Me liberta

Caminhada noturna
Como um velho mestre
A lua ensina a cidade

Caminhada noturna
A lua olha a cidade
Com superioridade

Ninguém merece
Os anos maduram
A xícara não obedece

Por melhor que seja
A ração e o sono
Não invejo o cão

O besouro
Tão pequenino - eu ele
Tamanho destino

Beleza tem patas
A vida busca sentidos
No terno olhar da vaca

Retrato do abandono
Cansado de domingos
O cão sem dono

O som da água
Entre as pedras:
Barulho que a vida precisa

Concluo - breve e silente
O que mostrei do amor
Foi o instante

Poesia - Carlos Eduardo Marcos Bonfá

San Gerolamo,by Caravaggio

Meu desejo existe,
E o desejo da página
Que se mistura
Com o meu desejo.
Escrevo porque
O desejo insiste
E o desejo da página
Já é o composto
Que me assiste.
Passiva,
Sou o regulador
De sua geografia
Ínfima e vasta,
O tatuador
Desta body artist.
Pede agressão
E sou o estripador
Que depois
Brinca de necrópsia.
Ativa,
Sua passividade relativa
É o desejo de ceder
E de me refrear
(Tudo é ambíguo),
É o jogo que comporta
Na abertura gráfica
De mais de uma porta,
É sua inconsciência
Dotada da vida
Do meu inconsciente
Sempre vigilante
E presente,
É sua prisão
Que é a própria liberdade
Minha e sua:
Comunicação.
Esta necrópsia
É também uma autópsia,
Deus violento
Violando um deus,
Corpo não corporativo
De textura e paixão.
Caneta, bisturi, formão.

Poesia - Marina Alexiou

Ilustração enviada pela autora
“A todos que dividiram a sua sombra comigo
E mostraram caminhos tão humanos”....
Nos meus olhos e no meu olhar vivem a tristeza
Da inclemência do tempo, da natureza, e a certeza
De que o estranho riso que brota dos meus tantos eus
É irmão desses espantos diante do gigantesco.
A todos que se aproximaram da minha sina
Abro espaço para os seus pés cansados,
Para suas vestes rotas, seu imerecido martírio,
Para sua volúpia contida em estudados disfarces
Para sua generosidade e sabedoria diante daquilo
Que se impõe. De forma definitiva.
Mas que poucos verão...
Eu lhes apresento ao mundo que não passa
De uma colcha de memórias, onde o jogo
De luzes das trevas e da beleza refletem
E acendem ainda outras através das gerações...
O meu hálito, este que carrego em densas nuvens tempestuosas
Sopra entre abismos que não permitem descanso
Os gritos, uivos de surpresa e dor são os raios
Que antecedem a verdade que será contada continuamente,
Por outros, que, assim como eu
(o Louco com o saco dos destinos humanos às costas)
Dirigem-se em sua direção,
Sem escolha....

[Para Micheli da Caravaggio]

Conto - Roniwalter Jatobá

The Shape of Emptiness ~ Patricia Velásquez
A Vida No Jogo Das Aparências

Num suspiro, vislumbra dois vazios: começo e fim.

[ in “Os cem menores contos brasileiros do século”, organizado por Marcelino Freire (SP, Ateliê Editorial, 2004) ]

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins

Considerações Sobre Uma Paisagem Urbana

Josias Germano olhou pela janela e observou a paisagem com atenção: o Teatro Municipal, o Viaduto do Chá, a chegada da Rua Xavier de Toledo com a Praça Ramos de Azevedo...

Uma das vantagens de seu novo cargo era poder observar esta paisagem nas janelas de sua sala de trabalho... cada olhar evocava uma ou mais lembranças... Pra começar o Teatro Municipal, que tanto o fez recordar o início dos anos oitenta, em que era usado como palco de shows de música popular...

Recordou-se também quando teve que desenhar o prédio como trabalho para a Faculdade de Arquitetura que cursara... a construção, projeto que os arquitetos italianos Domiziano Rossi e Cláudio Rossi (*) desenvolveram para o escritório de Francisco de Paula Ramos de Azevedo, era difícil de desenhar devido a enormidade de detalhes, porém a harmonia de seu conjunto de certa forma facilitava a tarefa...

Lembrou-se da R. Xavier de Toledo onde sua tia-avó Quepitas o levara na Leiteria Americana junto com as irmãs e as primas para comer sundays & banana-splits em meados da década de setenta... lembrou-se também do início da década de noventa quando em conjunto com um outro Xavier, cujo nome era Miraldo, elaborou um projeto de reconfiguração viária para esta rua... projeto que foi abortado devido a interesses do prefeito sucessor atendendo interesses de uma associação de bairro que pretendia facilitar o acesso de automóveis a esta região da cidade...

Lembrou-se que, graças a um renomado escritor denominado Volney Valter J' Tobag, conseguiu autorização para expor suas pinturas naquela galeria subterrânea que realiza a travessia sob a Rua Xavier de Toledo (**)... elas ficaram expostas ao lado das obras de Sávio Cacciaccinni, Sancho Ruiz Maldini, Alfeu Doaragna e Juliana Dilgorzi, das poesias de Miraldo Xavier, bem como exibir os vídeos “A Selva de Azeviche e o Coringa da Oitava Dimensão” e “Parangolixo” que ele fez em parceria com Hildon Cláudio Risério e Fúlvio Dicaravaggio... a inauguração foi um sucesso, tanto que até o famoso artista Maurício Nogueira Lima compareceu... depois todos foram comemorar na Leiteria Americana...

O nosso protagonista comparou suas lembranças, a do sorvete com a tia-avó e a das cervejas com os amigos artistas...”Duas épocas... agora a Leiteria Americana não existe mais!!!

Depois lembrou-se que na noite anterior havia lidos sobre a Teoria do Não-Lugar, elaborada pelo etnólogo Marc Augé, que definia duas categorias de espaço: o Lugar e o Não-Lugar... a grosso modo, Lugar é um espaço personalizado, familiar com história & estórias... já um Não-Lugar é um espaço despersonalizado, impessoal, sem vínculo com a cultura e a história do ambiente lindeiro, como o caso dos shopping-centers, aeroportos, hospitais, etc... Como o caso de uma região de São Paulo que tanto o incomodava: a Vila Olímpia, aquela região da “Nova Faria Lima”... aquela paisagem poderia ser a de Dubai, Xangai ou Houston, e tal fato o contrariava profundamente...

Josias Germano olhou pela janela e observou a paisagem com atenção: o Teatro Municipal, o Viaduto do Chá, a chegada da Rua Xavier de Toledo com a Praça Ramos de Azevedo.. e teve a certeza que estava observando um Lugar...

(*) Que apesar do sobre-nome comum não eram parentes, como também não eram parentes de um cantor chamado Reginaldo com o mesmo sobre-nome...
(**) Esta galeria encontra-se fechada atualmente.

Conto - Cesar Cruz


Really?
A Ruindade do Mundo

Apoiado no batente da porta, vejo o eletricista arrumar a fiação do meu chuveiro. Gosto de ver especialistas realizando suas tarefas.

— Quem fez essa instalação aqui? — de repente ele pergunta.

— O João — eu digo.

O João é um faz-tudo que presta servicinhos pros moradores lá do prédio, um homem simples que mexe com elétrica, hidráulica, pinturas, rebocos e outras coisas do gênero. Só não chamei o João dessa vez porque não o encontrei; e esse, que agora está aí a trabalhar no meu chuveiro, localizei através de um cartão jogado por debaixo da minha porta.

Assim que ele chegou pra arrumar o chuveiro, aproveitei e pedi um orçamento prévio para o conserto da torneira elétrica e uma geral na máquina de lavar roupas. Tinha, até agora, arrumado um bom cliente.

— Pois o João fez um serviço de preto aqui! — ele responde.

Sinto um choque ao ouvir isso. Um lado meu ainda quer supor que possa ter se tratado meramente do uso de uma expressão infeliz. Devolvo pra checar:

— Mas serviço ruim não tem a ver com a cor do homem, você não acha?

— Ah, tem sim! Preto quando não faz na entrada faz na saída!

Ouço aquilo com mais tristeza do que ira. Ele teve sorte. Se me pega uns 10 anos antes, possivelmente eu o tiraria de cima da escada na base da bordoada e o jogaria porta a fora com um pontapé na bunda. Mas não hoje... Outrora um jovem irascível, agora sou um homem de meia-idade, com um espírito em franco processo de amansamento.

Me ponho a pensar no pobre do João, que calado faz seus bicos pelo bairro há tantos anos sem maldizer ninguém. Penso na minha filhinha, que é preta, assim como eu e a Vanessa, que ficamos todos pretos em casa depois da chegada dela. Penso em todos os meus amigos pretos e nos pretos que não conheço que estão por aí, gente que batalha a vida nesse mundão injusto que é o nosso país. E penso também em Jesus, o carpinteiro que era amigo de brancos, pretos, pobres, ladrões, doentes e prostitutas, e que ensinou que o amor do Pai cobre a todos. O mesmo Jesus que, inexplicavelmente, aparece comunicado no cartão do eletricista.

— Acabei — ele fala, descendo da escada — Vamos combinar os outros serviços do senhor pra semana que vem?

— Mudei de ideia — eu digo simplesmente, dando o dinheiro pra ele e conduzindo-o para a rua.

Que o Homem é uma flor seca, eu já sei. Mas gosto de pensar que, algum dia, a ruindade do mundo vai acabar. E gente desse tipo vai sim arrumar chuveiros.

Lá no inferno.

Conto - José Miranda Filho

A Flor do reencontro, by Debora Andrade
Encontro de Amigos - Parte 19

Fernandes era o segundo de três irmãos. Não conhecia, porém, nenhum deles, e de seus pais tinha apenas uma tênue lembrança. Os pais o abandonaram quando ele tinha apenas quatro anos de idade. Foi viver na casa de um tio que, tempos depois, faleceu forçando-o a viver na rua, pois não conhecia nenhum parente com quem pudesse morar. Viveu na rua até a idade de 12 anos, quando um casal do interior da Bahia, da cidade de Senhor do Bonfim, acolheu-o e deu-lhe o carinho que não tivera. Será que este tipo de amor ainda existe nos dias de hoje? Certamente que sim! Ainda há pessoas que agem motivadas pelo amor de Cristo. Ações como esta só as fazem pessoas que têm Cristo no coração. Enfim. Cristo enviou alguém para cuidar daquele garoto que ficou à deriva das vicissitudes da vida.

Fernandes era um moço alegre e bem esperto, apesar do sofrimento que passou na rua, da falta de um lar, da fome e da miséria que teve de suportar. Jamais fumou craque ou se drogou com qualquer outro tipo de entorpecente, durante os quase cinco anos que viveu na rua. Sua vida se transformou a partir do dia que foi acolhido pela família de José Pereira, que lhe deu um novo lar e muito carinho.

Conheci-o no Colégio Marista de Senhor do Bonfim onde fizemos o curso secundário como era designado o primeiro grau de hoje. Tínhamos a mesma idade, 14 anos. O ensino naquela época era bem mais intensivo do que hoje. Àquela época aprendia-se Inglês, Francês, Latim, etc. Assistíamos missa todos os dias às sete horas da manhã, quando acordávamos sob o silvo estridente do apito do Irmão Pio, um professor da Congregação. Eram padres, mas não tinham o poder da sagração, isto é não podiam praticar e nem ministrar os sacramentos: celebrar missa, batizar, casar, confessar, dar a comunhão, etc. Pertenciam à ordem dos Irmãos Maristas, instituto de ensino formado de religiosos leigos, com votos simples, fundado em 1817 por Padre Marcellin Champagnat. Eram religiosos educadores. No ano de 1956, terminamos o curso. Fernandes já o havia concluído um ano antes e em seguida, com autorização de seus pais adotivos, embarcara para São Paulo, com a esperança de encontrar seus pais genéticos e seus irmãos, pois tinha informação de que eles estariam na cidade de São Caetano do Sul, Estado de São Paulo.

Desembarcou numa tarde de inverno, fria e úmida. O sol se escondia entre as nuvens escuras, impedido de lançar seus raios pelo revoar dos trovões tenebrosos e assustadores. Foi direto para o endereço que lhe deram. Nada encontrou, nem mesmo o nome da rua. Não havia coisa alguma, nem ao menos parecido. Na única rua que tinha semelhança de nome com a que lhe deram só existiam quinze Ele perguntou de casa em casa e pelas imediações e ninguém jamais ouvira falar o nome de Agamenon Alves Ferreira. Ninguém o conhecia. Não obteve qualquer pista que fosse capaz de devolver-lhe a esperança de encontrá-lo.

Passaram-se alguns anos.

Fernandes conseguiu diplomar-se em administração de empresa e tornar-se executivo de uma multinacional do setor de aços, com filiais no mundo inteiro. Nunca mais havia tido notícia de seus pais e irmãos. Também deixou de procurá-los por algum tempo. Numa tarde de sol, ao passear pelo Jardim da Luz, como fazia comumente aos domingos após o almoço, viu um homem, que a princípio julgou ser um dos seus irmãos, o mais novo, do qual ele trazia alguma recordação. Abordou aquele senhor alto e magro, bem barbeado, de cabelos grisalhos e bem vestido. Sentaram-se num banco da praça e começaram trocar ideias. Um verdadeiro interrogatório se estabeleceu entre ambos. Cada um queria saber da vida do outro. Quem era um... Quem era o outro....Instantes depois tiveram a confirmação: Eram realmente irmãos. Era o Felício, o mais novo. Abraçaram-se, lágrimas enternecidas foram derramadas por ambos os irmãos que o destino separou abruptamente. Fernandes perguntou pelos pais, pelos demais irmãos e de tudo obteve resposta: O pai havia falecido alguns anos atrás: ele mesmo fora o declarante e a pessoa que reconheceu o corpo, senão teriam enterrado como indigente. Ele foi achado caído na rua, esmagado por um veículo, sem documento algum que o identificasse. Soube ao ler os jornais do dia na coluna necrológica, porque também o procurava. Da mãe nunca tivera qualquer informação. Jamais tivera qualquer notícia de seu paradeiro. Dos irmãos, tinha leve conhecimento apenas de um, Renato, o irmão do meio, que sabia onde morava, mas que nunca teve qualquer contato com ele, por ser rebelde e não querer aproximação. Agora os dois juntos iriam à procura de Renato. Por um momento Fernandes lamentou a falta de sorte por não encontrar os pais vivos, mas mesmo assim estava feliz por ter encontrado alguém de sua família, um dos seus irmãos, com quem poderia, de agora em diante, compartilhar seus sentimentos e dividir suas alegrias. Alguns dias depois, foram ao encontro de Renato.

Em pouco tempo por fim, metade da genealogia estava restaurada. Faltava apenas a árvore principal. Esta não tinha como encontrá-la. Estava morta. Encontraram Renato exatamente no endereço que Felício possuía. Renato era o irmão mais novo. Estava bem, gozando de boa saúde, bem empregado e estabilizado na vida. Perguntaram-lhe se tinha notícia da mãe. Renato respondeu que apenas soube da mãe um dia, quando lendo as páginas de desaparecidos nos jornais surpreendeu-se ao ver o retrato de uma senhora que fora encontrada desfalecida sob a Ponte das Bandeiras. Obteve mais detalhes e constatou ser a própria mãe. Ela estava internada num asilo público destinado aos idosos. Ia visitá-la sempre constantemente. Ela não o reconhecia mais. Não falava, apenas olhava para ele como se quisesse recordar-se de alguma coisa do passado. Nada pôde fazer por ela, mas não lhe faltou qualquer amparo. Não tinha mais condições de recuperar sua saúde debilitada pela dureza das ruas de São Paulo. Quando faleceu, pode dar-lhe um enterro digno e uma sepultura decente. Ela está enterrada no túmulo que possui no cemitério da Consolação. Os três irmãos foram até o túmulo da mãe. Depositaram flores e acenderam velas. Oraram. Renato ainda nada sabia do Pai. Depois de se certificar do acontecido, os irmãos, finalmente, providenciaram a transferência dos corpos para uma única sepultura, para que ao menos ficassem juntos na eternidade. Trasladaram os corpos para o túmulo que acabaram de adquirir no cemitério das Lágrimas, em São Caetano do Sul.

Atualmente Fernandes reside com os pais adotivos, vizinho dos irmãos, únicos parentes sanguíneos, que moram na mesma rua. Fernandes é proprietário de uma confortável casa de seis suítes, com piscina, lareira, churrasqueira e todo o conforto necessário para ele e para seus pais adotivos, atualmente com noventa anos de idade. Tudo está ao alcance do casal José Pereira e deles. Dois médicos e duas enfermeiras se revezam 24 horas por dia para cuidar da saúde deles.